O bruxo da Ilha está ressurgindo. E não é lenda; é real, como mostra a foto abaixo. Depois do mural em homenagem à Antonieta de Barros, já concluído, agora é a vez da parede do Edifício Atlas voltada para a rua Nereu Ramos e avenida Osmar Cunha receber mais uma vez a imagem de Franklin Cascaes, o guardião do imaginário popular da Ilha de Santa Catarina, e voltar a ser ponto de referência e parada obrigatória tanto para os que apreciam street art quanto para os que se orgulham de ver a memória da cidade viva e valorizada. Nos dois casos, sempre vale o clique. E vale também sempre relembrar e recontar a trajetória de Franklin Cascaes, folclorista, artista plástico, escritor, pesquisador e professor de desenho.

Ouvinte atento e guardião das histórias do povo ilhéu
Nascido em 16 de outubro de 1908, na praia de Itaguaçu, quando o bairro ainda pertencia a São José, Franklin Joaquim Cascaes cresceu cercado pelos saberes da tradição açoriana. Filho de pescadores e descendente de imigrantes que viviam da pesca e da agricultura, ele foi, desde cedo, um ouvinte atento das histórias contadas por moradores da Ilha de Santa Catarina — lendas de bruxas, rezas, encantamentos e assombrações. Mas só aos 20 anos conseguiu convencer o pai de que queria estudar. E foi o estudo, aliado à sensibilidade artística, que o levou a documentar por mais de 40 anos a cultura popular da região.
Nos anos 1930, começou a trabalhar e lecionar no Liceu Industrial de Florianópolis como professor de desenho. E a partir da década de 1940 iniciou uma extensa pesquisa de campo, percorrendo vilas de pescadores, engenhos de farinha e bairros do interior da ilha, onde anotava tudo o que ouvia: histórias, orações, costumes e expressões locais. Com uma grafia que respeitava o modo de falar manezinho, Cascaes escreveu como o povo falava, transformando a oralidade em registro histórico.
“Percorri a Ilha de Santa Catarina, e deixei que o meu pensamento se entrelaçasse, mutuamente, com o Povo humilde e bom, e então adquiri o que possuo escrito, desenhado, esculpido e em trabalhos manuais, para legar a posterioridade.”
Franklin Cascaes
Além de registrar a fala, ele deu forma às histórias em desenhos, gravuras e esculturas. Representava bruxas com feições exageradas, monstros marinhos, figuras religiosas e cenas do cotidiano com traços marcantes, que mesclavam realismo popular e fantasia, formando e deixando discípulos como Gelci Coelho, o Peninha. Produziu cerca de 3 mil peças artísticas, entre esculturas de cerâmica, desenhos em nanquim e grafite, presépios e artefatos rituais, hoje preservados no acervo do MArquE/UFSC.
Durante muito tempo, sua obra foi ignorada pela academia por falta de “rigor científico”. Mas o bruxo Cascaes persistiu. Foi só a partir dos anos 1970 que passou a ser reconhecido como referência na cultura catarinense. Em 1983, pouco antes de sua morte em 15 de março, doou todo seu acervo à universidade, garantindo que seu trabalho fosse mantido unido. Seu legado deu origem à Coleção Elizabeth Pavan Cascaes, em homenagem à sua esposa, e à criação da Fundação Cultural Franklin Cascaes, quatro anos depois.
Obras que contaram a Ilha
- Presépio da Praça XV
Feito originalmente com folhas de piteira, o presépio criado por Cascaes na década de 1970 trouxe elementos da cultura local para a representação do nascimento de Cristo. A obra, patrimônio imaterial de Florianópolis, inspirou uma tradição que sobrevive até hoje: a montagem anual de um presépio vegetal na Praça XV de Novembro, no coração de Florianópolis. - A Criança embruxada
Conjunto de 17 esculturas de cerâmica que ilustram o processo de embruxamento de uma criança, conforme contado por moradores. A obra expressa a crença no poder das bruxas e a vulnerabilidade dos pequenos, tema comum no imaginário da ilha. - Mulheres bruxas atacando cavalos
Obra visual baseada em narrativas que falam de ataques de bruxas aos animais de trabalho, como cavalos e bois. Os desenhos de Cascaes retratam a cena com traços grotescos e expressivos, reforçando o medo e a tensão desses relatos. - Bruxas no Arvoredo
Inspirado nas lendas sobre o arquipélago das Ilhas do Arvoredo, Cascaes desenhou mulheres voando sobre o mar em noites de lua cheia. As obras retratam o espaço mítico e mágico da ilha como lugar de encontros sobrenaturais. - Boitatá
Figura do folclore brasileiro que aparece em suas histórias como uma serpente de fogo protetora da natureza. A versão de Cascaes em cerâmica e nanquim traz olhos flamejantes e corpo ondulante, misturando ameaça e beleza.
O Fantástico na Ilha de Santa Catarina: o livro que deu voz às lendas e à fala do povo ilhéu
Lançado originalmente em 1979, O Fantástico na Ilha de Santa Catarina é a obra literária mais representativa de Franklin Cascaes. O livro reúne 24 contos escritos entre 1946 e 1975, baseados em depoimentos que ele colheu diretamente das comunidades da Grande Florianópolis. O estilo oral, com linguagem fonética e regional, reproduz fielmente a fala do povo ilhéu.
As histórias transitam entre o sagrado e o fantástico. Em Balanço Bruxólico, por exemplo, pescadores são enganados por bruxas durante a pesca noturna. Em Nossa Senhora, o Linguado e o Siri, a religiosidade e o humor popular se entrelaçam. Já em A Bruxa Metamorfoseou o Sapato, o real e o surreal se confundem de forma lúdica e assustadora.
A edição atual, publicada pela Editora da UFSC em 2012, inclui glossários e notas explicativas que ajudam o leitor a compreender o universo simbólico de Cascaes. O livro é leitura obrigatória em escolas e universidades, além de referência para pesquisadores de cultura popular e folclore.
O universo fantástico de Franklin Cascaes em novo mural
No centro de Florianópolis, a arte urbana ganhou um novo marco em 2017 com a criação do mural em homenagem a Franklin Cascaes no Edifício Atlas. A obra, do artista Thiago Valdí, apresentava o rosto do folclorista ladeado por seres fantásticos extraídos de suas histórias — como bruxas, cavalos encantados, o boitatá e serpentes de fogo.
Localizado de frente para a rua Nereu Ramos e a avenida Osmar Cunha, o mural foi uma iniciativa da Fundação Franklin Cascaes e marcou visualmente o reconhecimento da importância do bruxo para a cidade. A obra virou ponto turístico, cenário de fotos e símbolo da identidade cultural manezinha.

Agora, em maio de 2025, após ser removida por causa de reformas estruturais no prédio, o mural em seus 34 metros de altura ganha uma nova versão, com novas camadas de significados, cores e história, com a coordenação de Thiago Valdí (@thiagovaldi) e execução de Bruno Brasil (@tudixtepo). A recriação conta com patrocínio do Sicoob SC/RS e apoio da Resicolor Tintas, Colorgin Arte Urbana, Construtora Engenho e Instituto Maratona Cultural.
Mais do que uma simples pintura em grande escala, ele funciona como um lembrete diário do valor do patrimônio imaterial da ilha. Um convite permanente para que moradores e visitantes conheçam — e reconheçam — o legado do homem que transformou nosso folclore em arte e parte fundamental da identidade de Florianópolis.
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